sábado, 4 de agosto de 2007

Status Atual da Hemoterapia em Pacientes Críticos Cirúrgicos – Resumo de Ícaro

Critical status of blood component therapy in surgical critical care
Lena M. Napolitano (Current Opnion in Critical Care 2004, 10: 311-317)

Introdução
Dados emergentes na última década têm documentado que o uso da hemotransfusão para o tratamento da anemia em pacientes estáveis hemodinamicamente na UTI não foi associado com melhores resultados. O estudo TRICC (1999) randomizou 838 pacientes para estratégia restritiva de transfusão (somente quando Hb<7,0g/dL, visando mantê-la entre 7 e 9) ou liberal (quando Hb<10,0g/dL, visando manté-la entre 10 e 12). Constatou-se que a taxa de mortalidade foi significantemente menor no grupo com a estratégia restritiva entre os com menor morbidade, APACHE II <20 e idade <55 anos. A taxa de mortalidade durante a hospitalização também foi menor (P=0,05). Uma possível exceção à hemoterapia restritiva incluiria os pacientes com IAM e angina instável.
Outro largo, multicêntrico, observacional e prospectivo estudo (n=3534 em 146 UTIs) (2002) constatou maior taxa de mortalidade entre os transfundindos, comparando-se grupos com graus de disfunção orgânica semelhantes, bem como evidenciou associações entre transfusões e diminuição da função orgânica e entre transfusões e mortalidade.
Outro estudo relevante também associou a uso indiscriminado da hemotransfusão em pacientes críticos com desfechos clínicos adversos.

Transfusão sangüínea em pacientes críticos
O estudo CRIT (2004) apontou a quantidade de bolsas de hemácias transfundidas como preditor independente de piores resultados clínicos – maior tempo de permanência na UTI e de hospitalização e aumento na mortalidade.
Além disso, este estudo documentou que, mesmo após as recomendações do estudo TRICC a respeito dos benefícios da estratégia restritiva de transfusão, pouco se tem mudado quanto à conduta terapêutica dos pacientes anêmicos nas UTIs!

Hemoterapia na sepse
Um estudo recente, randomizado e prospectivo envolvendo 15 pacientes sépticos documentou que o aumento da hemoglobina a partir da transfusão de hemácias estocadas não melhorou a utilização de oxigenio a nível global nem regional. Além disso, a transfusão de hemácias foi associada com redução da ejeção do ventrículo direito por aumentar a resistência vascular pulmonar. Este efeito pode ser relacionado, em parte, com concentrações de hemoglobina livre no sangue estocado. A hemoglobina livre, após a transfusão, destrói rapidamente o oxido nítrico (avidez 1000 vezes pela hemoglobina que pelo hematócrito) por oxidação a meta-hemoglobina e nitrato. A redução da biodisponibilidade do óxido nítrico promove vasoconstrição regional e sistêmica, acarretando subseqüente disfunção orgânica. A falta de eficácia da transfusão de concentrado de hemácias nos doentes críticos tem relação com inúmeros fatores, como tempo de estocagem do hemoderivado, aumento da aderência endotelial das células vermelhas estocadas, ligação do óxido nítrico à hemoglobina livre, leucócitos do doador, resposta inflamatória do hospedeiro e redução da deformabilidade das hemácias transfundidas.
Os guidelines do SSC orientam quanto à terapia restritiva, tomando como base o estudo TRICC, na ausência de DAC significante ou hemorragia aguda. (Sugiro uma olhada na Tabela 2).

Etiologia da anemia adquirida na UTI
A fisiopatologia da anemia adquirida na UTI agrega inúmeros fatores, como redução da eritopoetina (EPO) endógena relacionada à inflamação, diminuição da disponibilidade de ferro, sangramento oculto gastrointestinal ou terapia de reposição renal, perdas por flebotomia, trauma, procedimento invasivos ou cirurgias.
Um estudo recente em modelos animais constatou piora da função da medula óssea após o choque, resultado de alteração na diferenciação medular e aumento da apoptose, o que pode comprometer a hematopoese, contribuíndo para a anemia.

Riscos da hemotransfusão
As taxas de transmissão de vírus tem reduzido substancialmente, de modo que os riscos são mínimos, tornando a hemotransfusão muito segura. Riscos: HIV (1:1900000), HBV (1:1600000) e HCV (1:220000). Apesar disso, outros riscos associados à hemotransfusão têm aumentado aparentemente, como a injúria aguda pulmonar (1:8000). Contaminação bacteriana dos concentrados de plaquetas ocorre em até 1:1000.
O estudo CRIT documentou que o aumento na quantidade de hemoderivados recebidos relacionou-se com aumento total de complicações, bem como do risco de desenvolvê-las. A hemoglobina inicial se associou com o número de unidades transfundidas, porém não se mostrou um preditor independente do tempo de hospitalização e da mortalidade.
Uma meta-análise recente (n=13152) documentou a associação entre transfusão sanguínea e infeccão bacteriana pós-operatória (P=0,05). No subgrupo de pacientes com trauma este índice também foi significativo (P=0,05). Deste modo, este estudo fornece outros importantes indicativos para a prevenção da hemotransfusão nos pacientes críticos e nos traumatizados.
O estudo CRIT apontou também que a hemotransfusão é um fator de risco independente para VAP, sobretudo a VAP de início tardio, e demonstrou uma relação positiva dose-resposta.
A transfusão sanguínea foi um forte preditor independente de mortalidade (P<0,001) após o controle da severidade do choque, a partir dos seguintes índices (BE, lactato sérico, índice de choque e anemia).
A incidência de leucocitose pós-transfusional foi maior em pacientes não-sépticos que nos sépticos (P<0,001). A transfusão de bolsas de hemácias não-filtradas pode causar freqüentemente uma leucocitose transitória em pacientes críticos não-sépticos. Acredita-se que a IL-8 acumulada nas bolsas estocadas tenham uma função nesse fenômeno.

Hemotransfusão e segurança do paciente
Desde o processo de captação até o momento da transfusão, o risco do potencial erro humano existe, gerando a subseqüente transfusão do componente inapropriado. Houve um aumento na reportagem destes erros em 36%, conforme a reportagem anual do SHOT, o que a mesma atribui ao aumento da iniciativa de reportar o erro. Novas tecnologias têm emergido para melhorar a performance das hemotransfusões e reduzir os índices de erro humano.

Injúria aguda pulmonar relacionada à hemotransfusão
É uma complicação potencialmente ameaçadora, e se manifesta por dispnéia, taquipnéia, febre e hipotensão, e pode resultar em hipoxemia severa, requerendo ventilação mecânica, e pode evoluir para SARA. Estima-se que ocorra em 0,04 a 0,16% dos pacientes transfundidos. Representa a 3ª causa de mortalidade associada com a transfusão. Os fatores etiológicos e fisiopatólogicos permanecem desconhecidos.

Estratégias para prevenir a hemotransfusão nos doentes críticos
A flebotomia diária remove cerca de 40 a 70ml/dia. Algumas estratégias para reduzir essa perda sanguínea tem sido o uso de dispositivos de conservação do sangue, uso de tubos de amostra pediátricos ou de menor volume e a redução dos testes laboratoriais dispensáveis. Apesar da eficácia documentada, estas estratégias não são adotadas.
Dois estudos randomizados e prospectivos investigaram o uso de EPO recombinante humana (rHuEpo) no tratamento da anemia em doentes críticos, visando reduzir as taxas de hemotransfusão. O 1º estudo (n=160) constatou redução das hemotransfusões em quase 50% no grupo tratado com rHuEpo comparado ao grupo placebo. Já o outro estudo (n=1302) revelou redução em 10% do número de pacientes que necessitou de hemoderivados e de 20% no total de unidades transfundidas. O 3º estudo prospectivo e randomizado está em andamento e os resultados servirão de base para a aprovação pela FDA quanto ao uso da rHuEpo nos doentes críticos.

Conclusão
A anemia é comum na UTI, e os doentes críticos têm altas taxas de hemotransfusão. O sangue e os hemoderivados são recursos escassos. Pacientes críticos que estão estáveis hemodinamicamente podem tolerar Hb de 7g/dL. Esforços para reduzir a transfusão sangüínea requerem medidas multidisciplinares, as quais incluem a adoção de protocolos de transfusão e estratégias preventivas para reduzir a perda sangüínea na UTI.